quarta-feira, janeiro 19, 2011

Enquanto a oralidade e a linguagem matemática tradicional(o sistema euclidiano de representação ou a matemática de Isaac Newton) se desenvolveram a partir de conceituações muito abstratas, incapazes de apreender a natureza das coisas(como fossem as borboletas, flores que se distanciaram da terra, segundo Rudolf Steiner), a língua escrita e a geometria fractal têm direção inversa, porque, para Flusser, inventou-se a escrita a partir do desfiamento de camadas da imagem. Quanto à geometria fractal, como já foi dito, esta desenvolveu-se a partir da possibilidade de entrar na dimensão existente entre dois pontos ou planos ou números. Quer dizer, enquanto as primeiras afastam-se, as segundas se aproximam, penetram, entram na dimensão do real.
Como já insinuei serem as palavras instrumentos de penetração, no curso das idéias que, aqui, tento desenvolver, a esse respeito, sobre penetração, gostaria de transcrever outro trecho do A História do Diabo, de Vilém Flusser::


“2.4.6. As mãos que os diversos tipos de átomos estendem para alcançar realidade de vez em quando se encontram. Aí se agarram uma as outras para formar moléculas de diversos tipos. Moléculas são pedrinhas(mecanicamente indestrutíveis) que compõem a matéria, são portanto finalmente algo de concreto, embora nunca ninguém tenha tido a experiência vivencial da molécula isolada. A concreticidade da molécula não é portanto tão enormemente impressionante. Como será que se encontram as mãos para formar esses pedacinhos concretos? O mito da química recorre ao mito de Demócrito para explicar esse milagre ontológico inconcebível. As mãos são os ganchos dos átomos duros desse grego arcaico devoto, falsamente interpretado como pai do materialismo. Os átomos flutuam no nada qual flocos de neve, e quando, por “acaso”, se encontram formam realidade, porque seus ganchos se agarram. A realidade é uma espécie de crochê, e o nada a infiltra de todos os lados e por todos os poros. E o “acaso” desse crochê é o mesmo que produziu a terra. Algumas das moléculas têm estrutura simples. São formadas por poucas mãos que se agarram de maneira simples. Outras estruturas são extremamente complexas. Não se trata somente de saber quais são os átomos que entram na combinação, mas também de que direção e de que forma entram. É o antigo problema do espaço que entra em jogo. Os desenhos que químicos nos fazem dessas estruturas diabólicas lembram vivamente figuras paranóicas ou mandalas tibetanas. Modelos tridimensionais de moléculas lembram a chamada “escultura abstrata”. Os átomos são, nesses modelos, representados por bolas, e as suas mãos por barras. Mas deve ficar claro que essas bolas e barras não simbolizam “realidades”, mas realidades in statu nascendi. O que é “real”, quimicamente, é apenas a estrutura. Esses modelos são a demonstração sensível do esforço diabólico de transformar “ser puro” em fenômeno sensível. Mas é possível encarar esses modelos igualmente de um nível ontológico diferente. É possível dizer-se que as bolas nesses modelos representam seres individuais que se tornam reais somente em sociedade. São zoa politika cuja realidade é a sociedade chamada “molécula” neste exemplo. Esse nível ontológico, o qual podemos chamar “social”, nos desvenda uma realidade inteiramente nova. As moléculas não passam de fenômenos estruturalmente homomórficos com fenômenos como é o organismo vivo. Nele os órgãos são apenas condição virtual do organismo. O órgão isolado carece de realidade. O mesmo pode ser dito quanto ao “ambiente” da ecologia. O “ambiente” como estrutura é a única realidade, e as “coisas” que compõem o “ambiente”, por exemplo as árvores, os animais, os riachos, as nuvens e o chão de uma floresta, não passam de virtualidades da realidade que é a floresta. Podemos ainda dizer o mesmo quanto à sociedade humana. O indivíduo humano não passa de condição virtual da realidade que é a sociedade. Em uma palavra: a realidade está na estrutura. É o que o modelo das moléculas se esforçam por demonstrar aos sentidos.”
Vilém Flusser em A história do diabo.

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