domingo, março 09, 2014



Fazendo tudo muito devagarinho.

Quando acordei estava uma claridade estranha entrando da janela.

Devagarinho o céu azulou, ficou um março lindo.

Devagar, nublou, outra vez.

Consegui colocar de volta os discos numa gaveta e descobri que numa sacola tem roupa de cama para o guarda-roupa.

Não tenho que fazer tudo de vez...

Enquanto descobria essas coisas, me deparei com um livro do Eça de Queiroz.

E comecei a ler uma de suas cartas para Ramalho Ortigão, datada de julho de 1873.

Ele está escrevendo de Nova York, bom leit@r.

É incrível, veja:

“... De resto é uma cidade que em parte amo e em parte detesto. Amo-a, porque... porque sim - e detesto-a, porque deve ser detestada. O que isto é, V. não imagina: a violenta confusão desta cidade, o extraordinário deboche, o horror dos crimes, a desordem moral, a confusão das religiões, o luxo desordenado, a agiotagem febril, a demência dos negócios, os refinamentos do conforto material, os roubos, as ruínas, as paixões, os egoísmos – tudo isto está aqui Chauffé au rouge. Isto não pode durar, todo o mundo diz.

É uma cidade que tem cem anos e que está podre: está detraquée. Viveu muito, muito depressa – e chegou sem educação. Por que a verdade é esta: Nova York não tem civilização. A civilização não é ter uma máquina para tudo – e um milhão para cada coisa: a civilização é um sentimento, não é uma construção. Há mais civilização num beco de Paris, do que toda a vasta Nova York. Aqui não há gosto, nem espírito, nem distinção, nem crítica, nem classificação – nada: uma sociedade podre de rica, afogada em luxo, exagerando as modas, inventando muitas – e querendo enriquecer mais e ter mais luxo ainda. Você deve ter lido o que se tem passado aqui com o Credit Mobilier e com outras poderosas associações bancárias, ligadas ao sistema de administração: tem-se apenas descoberto – que os homens públicos, de alto a baixo, são um rolo de ladrões. Ladrões por toda a parte, eis a crítica da administração. Ladrões por toda a parte, eis a crítica do comércio. Ladrões por toda a parte, eis a crítica das ruas. Ladrões! Nova York transborda de ladrões: veste-os, exporta-os, vende-os – e quanto mais enforca, mais lhe nascem. Se Você sai do seu hotel e encara alguma das grandes ruas de Nova York, fica aterrado: aquela agitação, estrondo, ruído, febre, rostos consumidos e secos, toilletes únicas, carruagens nos passeios, ônibus aos lados, caminhos de ferros por cavalos no centro da rua, caminho de ferro à máquina por cima das ruas, junto ao teto das casas, o aparato imenso da polícia, a excentricidade dos anúncios, o rumor apressado de todo mundo... Compreende logo que está entre um povo bárbaro, que aprendeu a civilização de cor. Mas bárbaro como é – que força, que originalidade inventiva, que perseverança, que firmeza! È estranho! E ao mesmo tempo que grosseria de maneiras: revólver, praga e empurrão, algumas palavras de inglês e muita saliva – eis o que é a língua americana. Como eu detesto esta canalha! Como a mais pequena aldeia de França é superior, imensamente superior pela sua civilização a esta orgulhosa Nova York, que se chama a si mesma como Roma – A Cidade.

Estúpida Nova York – que fez ela jamais para se chamar A Cidade? Paris fez a Revolução, Londres deu Shakespeare, Viena deu Mozart, Berlim deu Kant, Lisboa...deu-nos a nós – Que diabo! Mas esta estúpida Nova York, o que tem dado?...”.

Um comentário:

André disse...

Muito bom :)