quinta-feira, janeiro 13, 2011

Sim, não existe ordem na natureza das coisas, mas apenas na tradução dessa natureza pela cultura humana: nas línguas, nas artes, na arquitetura das cidades, na arrumação de meu guarda-roupa, nas ciências...
A mente humana é um filtro que organiza a realidade e cada cultura, cada língua, cada gênero artístico, cada guarda-roupa, cada época, tem a sua forma própria de organização.
A esse respeito Vilém Flusser filosofa no seu A história do diabo(1965):

“(...) A nossa tradição ocidental louva a harmonia das esferas como obra divina. Deve portanto chocar o leitor que a nossa argumentação se veja forçada a concluir atribuindo essa harmonia ao diabo. Um instante de meditação amenizará o choque. O que admiramos no céu estrelado não é sua ordem, mas a sua duração gigantesca. Comparada com a duração de nossa vida, são as esferas celestes efetivamente eternas. Essa sua relativa eternidade é o que nos parece divino. Sabemos, no entanto, que se trata de um engano nosso. Os astros são fenômenos temporais, como tudo neste mundo dos sentidos. Com efeito, os astros são “imperpetua mobília” como as máquinas que produzimos. Reduzidas as dimensões e a duração, não passa o céu estrelado de um exemplo das máquinas que ultimamente nos são fornecidas pela nossa tecnologia. Com uma diferença apenas: as nossas máquinas funcionam geralmente com exatidão maior que a máquina celeste, fato que os astrônomos constatam com um leve sorriso. Seria blasfêmia atribuir essa máquina imperfeita ao criador divino. Com o mesmo direito poderíamos atribuir-lhe as nossas máquinas destinadas a produzir instrumentos ou mortes. Não, a máquina gigantesca dos astros é obra do diabo. E o nosso parque industrial é sua prole tardia. Os nossos aparelhos são cópias aperfeiçoadas do padrão diabólico que aparece, todas as noites, acima de nossas cabeças. São cópias mais refinadas, já que produtos de um esforço criador de um diabo mais maduro.
Enquadremos Newton nessa ordem de idéias. É o descobridor provisório da estrutura da máquina celeste. Essa estrutura é articulável em proposições matemáticas simples. O funcionamento da máquina diverge dessas proposições em porcentagens pequenas, mas apreciáveis. Newton atribuía a autoria da máquina a Deus, disse, portanto “God is a mathematician”. O autor da máquina celeste é, com efeito, um matemático talentoso, mas um matemático imperfeito.(...) A descoberta da estrutura matemática nos fenômenos astronômicos é muito satisfatória para o espírito pesquisador humano. Graças a essa descoberta reconhecemos nas estrelas um espírito semelhante ao nosso. Com efeito, reconhecemos nas estrelas o diabinho que nos inspira no íntimo das nossas mentes pesquisadoras. (...) É por isto que a contemplação do céu estrelado é, para nós, uma espécie de auto-reconhecimento. Esta é uma das explicações da atração que as estrelas sobre nós exercem. A outra explicação é a seguinte: o esboço newtoniano da estrutura celeste está sendo superado. Estamos começando a nos convencer de que seríamos capazes de construir uma máquina celeste bem mais perfeita. Com efeito, já iniciamos as tentativas nesse sentido, e os nossos satélites artificiais e “guided missiles” são os primeiros sintomas dessas tentativas. É que o diabinho em nós amadureceu e procura, por nosso intermédio, retificar as criancices que cometeu.”

Um comentário:

Olhar Afiado disse...

Olhar as estrelas é comigo mesmo! Através da máquina imperfeita da minha retina.