Gosto adquirido
Bons achados no CD de Glauco Lourenço
"...Um dos melhores discos independentes brasileiros ao qual tive acesso nos últimos tempos é mui justamente dedicado a Joni Mitchell: "Abalo sísmico" (2007), de Glauco Lourenço. Ele compõe e se apresenta desde o começo dos anos 90, mas este é apenas seu primeiro CD. Apesar disso, ou por isso mesmo, não se interessa em fazer concessões, exige atenção. Troço corajoso nestes tempos em que a arte adula a impaciência dos iPods.
Das 12 canções incluídas em "Abalo sísmico", todas têm melodias evanescentes de Lourenço; oito têm letra de Suely Mesquita; três de Mathilda Kóvak, inclusive a faixa título; e uma é assinada só pelo próprio intérprete, que não faz feio. Chamada "Represa", ela se constrói numa poderosa imagem de auto-repressão sexual e traz ao menos dois versos brilhantes: "A natureza tem seu próprio curso/ E eu tenho sido um péssimo aluno".
Lourenço, Suely e Mathilda, entre outros, acreditam na relevância das letras. Isso é um alento para quem busca relações musicais estáveis e nem sempre encontra. (...)
Não é de hoje que Suely e Mathilda produzem letras inteligentes, quando são dramáticas, cômicas ou ambas as coisas. Caso de "Abalo sísmico", canção que abre e batiza o disco de Lourenço. Leia-se esse trecho: "O teu beijo é um bombardeio/ No meu abrigo antiaéreo/ Teu beijo deletério/ Derruba o meu Reich/ Acaba com meu império/ Teu beijo tempestade/ Umidade absoluta do ar/ Furacão varrendo a cidade/ Teu beijo pode matar."
Suely assina os versos de "Alma gêmea": "As bichas e as velhinhas/ Têm muito em comum/ (Miami e Copacabana)/ Queridos,/ Por que vocês não ficam logo bons amigos/ E saem no fim de semana?" E os de "Loteria de Deus": "A sua mãe tinha um rosto estranho?/ A sua mãe não tomava banho?/ A sua mãe lhe recebeu num Mercedão cor prata/ Ou lhe deu sua papinha numa lata?// Na loteria de Deus/ Em qual barriga você se escondeu?"
"Abalo sísmico" adiante, Mathilda reaparece com "Rio seco": "Nossas lágrimas/ Conjuradas/ Conjugadas/ De mãos dadas/ Convergem para o mesmo desaguar/ Enquanto nossos sorrisos/ Migram para outro lugar." Caramba, bonito e cruel isso. Graças ao arranjo que cresce em tensão e vira quase um tango, "Rio Seco" torna-se a melhor faixa do CD.
Por sinal, é bom frisar que "Abalo sísmico" não se esgota na leitura do encarte com as letras. O que o faz ser "um dos melhores discos brasileiros ao qual tive acesso nos últimos tempos" é também a sua discreta variedade musical, que, ao lançar mão de poucos instrumentos, estiliza a balada roqueira ("Abalo sísmico"), o samba ("TV que ninguém vê"), o jazz ("Infla minha alma") e até a música indígena ("Curare").
Last but not least há, claro, a surpreendente voz de Lourenço, andrógina sem fazer esforço algum. Sexta-feira passada, ele lançou o CD num show nas Casas Casadas, em Laranjeiras, acompanhado pelos mesmos ótimos músicos que tocam no estúdio: João Gaspar (violão e guitarra), Bruno Migliari (baixo acústico) e Eduardo Szajnbrum (bateria e percussão). a despeito do confessado nervosismo, o jeito de Lourenço no palco por instantes fez-me pensar num Cazuza sem exagero, cool, se é que isso não é impensável.
Há 19 dias, o Joaquim Ferreira dos Santos apostou suas fichas em Sílvia Machete, que ainda não tive oportunidade de ouvir, como "candidata ao trono de melhor cantora brasileira de todos os tempos da semana passada". Para fazer pendant, então, elejo Glauco Lourenço meu candidato a melhor cantor brasileiro de todos os tempos da semana passada. Concordo, Joaquim, sempre podemos estar enganados, mas viver é isso aí, enganar-se."
Arthur Dapieve, Segundo Caderno, O Globo, dia 9/5/2008
dapieve@oglobo.com.br
sábado, maio 10, 2008
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2 comentários:
Nossa, que ótimo!!! Lembrei destas músicas e faz tempo que não ouço o Glauco cantar.Lembrei especialmente a "das bichas e das velhinhas" , adoro o jeito irônico do Glauco cantando esta música... Quero muiiiiiiito ouvir o CD
Kalic
Estou muito feliz com o que li.
Só conheço as músicas do Glauco que estão no myspace.
Mas já coloquei o disco dele na minha listinha de próximas aquisições, lado a lado com os discos do Capucho, Suely, Mathilda e Kali.
É isso.
Viva Glauco!
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