Sempre me emociono pro bem ou pro mal, quando leio as opiniões sobre meus livros ou músicas. Dessa vez, foi o Murilo quem postou em seu blog. Transcrevo aqui no Blog Azul, mas quem quiser ver o original no blog dele, veja aqui: resenha no blog do Murilo
quarta-feira, 28 de agosto de 2013
"Rato" ou A Mais Difícil Escolha De Um Escritor
Há muitos leitores que se incomodam com narradores sinceros demais. Para
eles, deve sempre pairar uma nuvem espessa entre as páginas de um livro
e os mecanismos cerebrais responsáveis pelo entendimento daquilo que
está escrito. Narrações em terceira pessoa, frias e obsessivamente
oniscientes, costumam satisfazer mais as hordas de amantes da
literatura, os quais, na maioria das vezes, vão aos livros em busca de
saídas para suas vidas insossas. A voz presunçosa de um narrador cruel e
supostamente isento lhes causa a sensação de domínio de uma verdade
qualquer, além da ilusória possibilidade de virem a estabelecer, eles
também, aqueles leitores, um conjunto de verdades irrefutáveis sobre a
humanidade.
Este também é um engano no qual costumam se enredar muitos escritores.
Eu mesmo, quando procuro estabelecer um ponto de vista pelo qual contar
uma história, lanço-me em devaneios sobre quão distante e sábio será o
meu narrador, tal qual uma máscara que se escolhe antes de se lançar num
baile de carnaval, onde o principal objetivo é caçar alguém; muitos
autores se comprazem da furtiva brincadeira de caça ao leitor. Eu, no
entanto, gosto dos narradores falíveis, das vozes duvidosas, dos olhares
míopes. Só eu sei quanta coragem é necessária para me dar a este luxo
da imperfeição! Entretanto, isto ainda não é suficiente para eu chegar
ao ponto em que pretendo chegar em minha expressão artística - se bem
que eu mal inaugurei a minha incursão pela literatura.
Quantos jamais se deixariam jogar nesta correnteza de imprecisão estilística, sob o risco maior de serem expurgados da lista dos escritores respeitáveis? São muito poucos os escritores que não parecem ansiar pelo respeito, seja de leitores, seja de críticos. De tão raros, a leitura de suas obras é capaz de me constranger, na medida em que denuncia a minha ainda pouca disposição de me lançar sem medo sobre a página virgem.
Luís Capucho é um desses raros artistas, sem dúvida. Não porque sua experiência pessoal seja a principal matéria-prima das duas obras suas que li até agora, mas porque sua narrativa é de uma sinceridade desconsertante. Se em "Cinema Orly", seu livro mais conhecido, é ele mesmo quem nos conta suas aventuras, em "Rato", é o filho de Dona Creuza quem não tem medo de voar no tapete puído de suas fraquezas. Este mostra sem amarras quão difícil é a sua condição de jovem homossexual num ambiente de homens rudes e encaixados num mundo medíocre, no qual a masculinidade é forjada pela capacidade de demarcar território pela imposição da força física ou do status oriundo do trabalho, ou ainda, num outro espectro, pela afirmação cotidiana de suas mazelas. O narrador de "Rato" é tão somente um menino superprotegido pela mãe, que se ocupa de privá-lo das dificuldades, desdobrando-se para lhe garantir o sustento e o conforto de uma vida de pouca privacidade e conforto.
No livro, Capucho consegue novamente representar o universo de homens
gays de sua geração, com as limitações afetivas frente aos açoites do
desejo, que os fazem patinar desajeitados numa sociedade criada para
lhes privar dos privilégios da livre expressão da sexualidade. Diferente
de uma mulher, o jovem homossexual narrador do livro negocia seu desejo
sexual com os homens que o rodeiam, sem a possibilidade de exercer
francamente a sua sensualidade. Por outro lado, diferente dos homens com
quem convive e assim como os homossexuais de sua geração, o narrador de
"Rato" simula uma performance de discrição e distanciamento, de modo a
não se tornar ainda mais vulnerável diante dos seus pares, ou rivais. É
neste limbo de indefinições e obscuridades que o jovem em tela parece
exibir suas próprias idiossincrasias.
Claro que a opção pela transparência e pela objetividade na representação das imagens poderia empobrecer o estilo. Em "Rato", faz-se necessário abstrair a beleza da fidelidade do autor às 'anotações' do personagem-narrador. Sem dúvida, Capucho poderia escolher a via fácil de analisar o seu personagem psicologicamente, buscando razões para as suas dúvidas e para suas tendências, contudo, corajosamente, o autor faz o contrário: deixa-o livre para expressar seu inconformismo e suas impressões sobre o sexo, o mundo masculino e o amor. Aliás, a incapacidade de o jovem narrador embrenhar-se pelo amor de um homem após conhecê-lo é, para mim, o traço fundamental desta personalidade, que a faz icônica de toda uma geração de homens homossexuais. Capucho consegue retratar esta característica com o primor que somente alcançam os hábeis em dizer a verdade. Ele é mesmo um caso raro de autor literário.
Assim, Capucho mostra, por trás de uma literatura que parece não se importar com a forma, toda a riqueza de sua narrativa, dura, seca e cinzenta, para o espanto de quem esperava um sonho festivo, em se tratando de uma literatura realizada por um homossexual. Esta aspereza, a meu ver, é a chave para se admirar a sua obra.
Tudo parece jogado a esmo, porém há um cálculo escondido naquele mundo sem sentido, sem fronteiras de "Rato". Há uma penumbra que me fez querer acompanhar aquele jovem, que me encantou, apesar de sua atitude mimada. Ainda que o elemento rato tenha sumido no texto, ele persiste na ação do jovem, sem que referências insistentes ocorram para amparar a escolha comparativa. Nós, homens homossexuais sabemos bem o que é caminhar rente ao chão, entre frestras nas paredes, a causar nojo em cada aparição inesperada. Esconder-se foi a sábia escolha deste jovem e a de muitos de nós. Sim, em alguma medida, todos somos como ele, ainda que tenhamos experiências distintas.
Pode ser que, no futuro, a literatura se renda a Capucho, na medida em
que se desapegue das complexidades existenciais forjadas pela linguagem.
Por hora, resta-me pedir que os homens homossexuais atentem à sua obra,
para serem salvos. Sim, para isto mesmo.
Aquela sinceridade a que me referi, tão evidente em "Rato", aquela obediência aos ditames do ser fictício que conduz a narrativa tornam o livro um objeto transformador e curativo, como seu antecessor, "Cinema Orly". Eu penso ser este o máximo a que pode chegar uma obra literária. Poucos alcançaram este intento. Estes corajosos normalmente custaram para se verem reconhecidos, mas foram eles os que cozeram as feridas da humanidade e estar entre eles deveria ser a ânsia de todo literato.
O medo, no entanto, os empurra do alto dos barrancos da língua, colorindo, com as firulas de suas prosas, o seu caminho descendente até o poço de mediocridade em que, confortavelmente, se instalam e se preparam para faturar bastante dinheiro, uma vez que têm como recompensa o gosto do leitor, igualmente acovardado.
Capucho, em foto de Simon Prado. De sua página no Facebook. |
Quantos jamais se deixariam jogar nesta correnteza de imprecisão estilística, sob o risco maior de serem expurgados da lista dos escritores respeitáveis? São muito poucos os escritores que não parecem ansiar pelo respeito, seja de leitores, seja de críticos. De tão raros, a leitura de suas obras é capaz de me constranger, na medida em que denuncia a minha ainda pouca disposição de me lançar sem medo sobre a página virgem.
Luís Capucho é um desses raros artistas, sem dúvida. Não porque sua experiência pessoal seja a principal matéria-prima das duas obras suas que li até agora, mas porque sua narrativa é de uma sinceridade desconsertante. Se em "Cinema Orly", seu livro mais conhecido, é ele mesmo quem nos conta suas aventuras, em "Rato", é o filho de Dona Creuza quem não tem medo de voar no tapete puído de suas fraquezas. Este mostra sem amarras quão difícil é a sua condição de jovem homossexual num ambiente de homens rudes e encaixados num mundo medíocre, no qual a masculinidade é forjada pela capacidade de demarcar território pela imposição da força física ou do status oriundo do trabalho, ou ainda, num outro espectro, pela afirmação cotidiana de suas mazelas. O narrador de "Rato" é tão somente um menino superprotegido pela mãe, que se ocupa de privá-lo das dificuldades, desdobrando-se para lhe garantir o sustento e o conforto de uma vida de pouca privacidade e conforto.
Eu e Luís Capucho. Niterói, Agosto de 2013. Foto de Pedro Paz. |
Claro que a opção pela transparência e pela objetividade na representação das imagens poderia empobrecer o estilo. Em "Rato", faz-se necessário abstrair a beleza da fidelidade do autor às 'anotações' do personagem-narrador. Sem dúvida, Capucho poderia escolher a via fácil de analisar o seu personagem psicologicamente, buscando razões para as suas dúvidas e para suas tendências, contudo, corajosamente, o autor faz o contrário: deixa-o livre para expressar seu inconformismo e suas impressões sobre o sexo, o mundo masculino e o amor. Aliás, a incapacidade de o jovem narrador embrenhar-se pelo amor de um homem após conhecê-lo é, para mim, o traço fundamental desta personalidade, que a faz icônica de toda uma geração de homens homossexuais. Capucho consegue retratar esta característica com o primor que somente alcançam os hábeis em dizer a verdade. Ele é mesmo um caso raro de autor literário.
Assim, Capucho mostra, por trás de uma literatura que parece não se importar com a forma, toda a riqueza de sua narrativa, dura, seca e cinzenta, para o espanto de quem esperava um sonho festivo, em se tratando de uma literatura realizada por um homossexual. Esta aspereza, a meu ver, é a chave para se admirar a sua obra.
Tudo parece jogado a esmo, porém há um cálculo escondido naquele mundo sem sentido, sem fronteiras de "Rato". Há uma penumbra que me fez querer acompanhar aquele jovem, que me encantou, apesar de sua atitude mimada. Ainda que o elemento rato tenha sumido no texto, ele persiste na ação do jovem, sem que referências insistentes ocorram para amparar a escolha comparativa. Nós, homens homossexuais sabemos bem o que é caminhar rente ao chão, entre frestras nas paredes, a causar nojo em cada aparição inesperada. Esconder-se foi a sábia escolha deste jovem e a de muitos de nós. Sim, em alguma medida, todos somos como ele, ainda que tenhamos experiências distintas.
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Aquela sinceridade a que me referi, tão evidente em "Rato", aquela obediência aos ditames do ser fictício que conduz a narrativa tornam o livro um objeto transformador e curativo, como seu antecessor, "Cinema Orly". Eu penso ser este o máximo a que pode chegar uma obra literária. Poucos alcançaram este intento. Estes corajosos normalmente custaram para se verem reconhecidos, mas foram eles os que cozeram as feridas da humanidade e estar entre eles deveria ser a ânsia de todo literato.
O medo, no entanto, os empurra do alto dos barrancos da língua, colorindo, com as firulas de suas prosas, o seu caminho descendente até o poço de mediocridade em que, confortavelmente, se instalam e se preparam para faturar bastante dinheiro, uma vez que têm como recompensa o gosto do leitor, igualmente acovardado.
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